Pensava eu que ainda tinha algum tempo até surgirem as “perguntas difíceis”. E pensava, convictamente, que seria algo do tipo: “de onde vêm os bebés?”; “porque é que há guerras?” ou então “porque é que o Donald Trump tem um cabelo tão estranho?”. Mas não. A pergunta difícil foi: Onde estão os meninos destes sapatos? E agora pergunto-vos eu: como é que se explica a uma criança de dois anos que as piores “pessoas” do mundo não são os duendes que fazem traquinices ao Noddy? Pois, não se explica. Assobia-se para o lado e inventa-se uma história que envolve voos nas costas de dragões e sapatos que tiveram de ser deixados para trás para não magoar os bichos e espera-se que a coisa fique por aqui durante mais alguns anos.
Mas a triste história dos sapatos na margem do Danúbio começou em Outubro de 1944, quando Ferenc Szalasi, com o apoio de Hitler, se tornou líder da Hungria e deu início a uma época de terror no país. Cerca de 80000 Judeus foram expulsos de Budapeste numa longa marcha da morte até à fronteira austríaca e, a partir daí, levados para os campos de concentração. Mais de 20000 Judeus foram também brutalmente assassinados nas margens do rio Danúbio. As vítimas eram forçadas a retirar os sapatos na zona de fuzilamento, mesmo à beira do rio.
Os sapatos eram um bem apetecível e que escasseava no mercado na época da Segunda Grande Guerra Mundial. Eram de seguida atingidos a tiro para caírem nas águas geladas do Danúbio. Por vezes, com requintes de malvadez, quando os sapatos estavam muito gastos, optavam por deixar as vítimas com eles e atavam os cordões de forma a duas ou três pessoas ficarem presas. Depois, atiravam apenas numa pessoa, de modo a que os que estavam vivos caíssem também arrastados para as águas. Se não morressem logo dedicavam-se a praticar tiro ao alvo. Não admira que o cognome do Rio Danúbio fosse nos anos 44-45 o “cemitério de Judeus”.
E é aqui que entra este fantástico memorial, “shoes on the Danube promenade”, em Budapeste. São sessenta sapatos em ferro, nos mais variados estilos em voga nos anos 40 e nos mais diversos tamanhos de mulher, homem e criança. E ainda, com modelos representativos das mais variadas profissões e estratos sociais, a recordar-nos que a xenofobia não poupava ninguém.
Uma criação de Can Togay e Gyula Pauer que produziram esta homenagem poética sob a forma de sapatos. Todos usamos sapatos e, ao vê-los ali vazios e pousados na margem que mergulha nas águas revoltas, é impossível também nós não nos “colocarmos naqueles sapatos”. Nos sapatos de todos aqueles que sob a ameaça de uma arma tiveram de os descalçar e enfrentar a morte. E ao olhá-los ali, gentilmente pousados, quase que esperamos que os seus donos os venham ocupar a qualquer momento. Depois de um longo voo nas asas de um qualquer dragão.
2 Responses
O sapo trouxe-me aqui. Sempre admirei essa tua alma errante e essa coragem de ir à aventura. Agora vou poder ter um bocadinho delas lendo os teus posts. Quem sabe, um dia, inspirada por estas histórias, farei como o Bob… 😉
Muito obrigada querida Filipa! Muitas saudades tuas <3